05 maio 2005

Última carta de António Fragoso

Descobri a obra do compositor António Fragoso há cerca de doze anos, quando preparava a minha Prova de Aptidão Profissional do Curso de Piano que tinha como tema o reportório pianístico português do início do século XX.
Existe já uma link no blog com alguns dados biográficos e a gravação de duas peças deste compositor. Assim, e dado que a carta é longa, não me detenho mais e passo a palavra a António Fragoso:

A ESFOLHADA

Ao Fernando Botelho Leitão

Meu caro Fernando

As férias estão terminadas. Dentro de breves dias iremos novamente trabalhar,
pró música, nessa complicada engrenagem da vida da capital, onde o nosso espírito se cansa, mas onde temos também os momentos de mais elevado prazer espiritual, aqueles que nos oferecem as audições das grandes obras dos grandes mestres da música, essa arte subtil e engenhosa que nós cultivamos com tanta fé e tão entusiástica paixão. E como vemos aproximar-se o dia em que temos de deixar aqueles que nos são mais queridos, fazemos esforços para nos divertirmos o mais possível, tentando assim esquecermo-nos por um momento da tristeza da vida de hoje que cada vez está sendo mais complicada e mais angustiosa, tais e tão graves são as doenças que dia a dia vão devastando impiedosamente o Corpo e a Alma do nosso pobre país.
Mas nós devemos encarar a vida com uma grande dose de filosofia positiva e por isso nos vamos divertindo à grande enquanto os males nos não batem à porta. De resto, como dizia o grande Fradique Mendes, “este mundo está superiormente organizado” e, por isso mesmo, cheio de compensações. Uns sofrem, outros riem: amanhã invertem-se os papéis e o mundo gira com a mesma velocidade e com a mesma fleuma!...
Ora foi filosofando fleumàticamente que as pessoas gradas que este ano têm veraneado na Pocariça, a tão hospitaleira e encantadora aldeia onde nasci, e onde ainda não chegaram senão os ecos das epidemias, puderam tomar para lema da sua vida de férias, aquele verso tão português do
Burro do Sr. Alcaide que principia assim:
-“Viva a folia, dançar, dançar, etc...”
E, na verdade, a nossa vida, de há dois meses para cá, tem sido um constante e vertiginoso rodopiar, entre os passos lentos e tantas vezes cheios de ternura duma valsa de Berger, e os saltos
ursinos e desengonçados dum fox-trot.
Ontem, porém, despimos a rabona de todos os dias, e vestimos a jaqueta dos homens de lavoura; as senhoras enfeitaram-se com as cores garridas de Viana do Castelo; e, descendo da sala ao campo, fomos dançar numa eira, ao som da guitarra e do harmónio, as danças tão simples e tão pagãs do nosso povo.
Tinha-se organizado uma esfolhada; como porém, o mês de Agosto já passou, tendo levado consigo o calor e a luz prateada do seu luar, a esfolhada teve de ser feita de dia, à hora em que o sol de Outono vai amarelecendo as folhas dos vinhedos que ainda há bem poucos dias levaram às adegas, em alegrias báquicas, a riqueza abençoada do seu suco. Sendo assim, ela não podia ter o encanto sugestivo daquela esfolhada minhota que Júlio Diniz nos descreve através da prosa tão simples e tão cheia de harmonia; mas teve, sem dúvida, o mesmo ar de alegria e de mocidade.
Estavam já todas as senhoras, lindas no seu traje minhoto, e alguns rapazes, procedendo à descamisa do milho, quando apareceram o Mário Vaz, o Manuel Pessoa e o Carlos, meu irmão, todos de calça branca e cinta escarlate, tocando ruidosamente o popularíssimo
Zé P’reira. Podes calcular o barulho, a alegria esfusiante, os vivas e as palmas que eles provocaram. Depois houve cantigas ao desafio em que mais uma vez saltou, em rimas cheias de graça, a veia poética do Mário Vaz, a que a Armanda Pessoa respondia com aquela sua voz tão docemente timbrada; o Jorge e o Arnaldo Frota flirtaram; os felizes a quem a Boa-sorte fez chegar às mãos as espigas de milho-rei, regalaram-se de dar abraços; o Evaristo Pessoa mais uma vez pôde manifestar quanto é grande o seu talento para a arte de Niepce; os petizes fartaram-se de berrar, e eu...eu fiz o que pude!...
O sol escondia-se já por detrás dos pinheirais quando chegaram as criadas com papas de abóbora...Nova vozearia, novos vivas, novas palmas!...E, num instante, todo o grupo, agarrado à sua colher e ao seu prato, saboreava esse belo acepipe com um apetite digno de Pantagruel. A alegria faz fome, lá dizia não sei quem...e, na verdade, assim é. Foi só então que começaram as danças.
E os ecos puderam repetir ainda, à hora melancólica das Ave-Marias, as melodias alegres do Vira, da
Caninha Verde, dessas danças tão caracteristicamente portuguesas que se cantavam na eira.
Nessa festa, nós pudemos sentir bem o que há de alegre e bom na alma do nosso povo; mas nem por isso deixou de ter o seu cunho de elegância e distinção.
Tive pena que cá não estivesses para nela tomares parte; que ao menos a minha pena tenha podido dar-te uma pálida impressão do que ela foi.

Teu amigo certo
A. Lima Fragoso
4/10/918
FRAGOSO, A. Lima, A Esfolhada, s.l., 1918, apud JORGE, Leonardo, António Fragoso - Um génio feito saudade, Rio de Janeiro, Livros de Portugal, 1968, pp. 93-95.

Nove dias depois estava morto. Trabalhava, então, na composição do segundo andamento de uma sonata para piano e violino que não conseguiu completar.
Nesse mesmo dia 13 de Outubro morreu também uma irmã de quinze anos e, ainda, no dia 15 outra irmã de dezanove anos e no dia 17 um irmão de dezoito. Dos cinco filhos do casal Lima Fragoso, apenas a filha mais nova, então com três anos de idade, recuperou da gripe-pneumónica.

NOTA: Existem poucos estudos sobre a obra de António Fragoso. Em 1968 foi publicado o livro acima referido cujo autor era filho de um médico da Pocariça que assistiu a família do compositor nesse Verão trágico de 1918. É um testemunho muito sentido de alguém que conheceu António Fragoso em criança, mas não é uma obra científica. De qualquer modo, é uma leitura interessante para quem se interessa pelo compositor. Pode consultar-se na Biblioteca Nacional. Julgo que já não se encontra à venda.

6 Comments:

Blogger Mitsou said...

Vou passando por cá, quando o tempo mo permite, e fico sempre encantada com a qualidade dos textos e da música. Parabéns! Um beijo.

5/5/05 23:31  
Anonymous Anónimo said...

Obrigada por me recordarem tradições tão próximas de mim.
A Pocariça(Cantanhede)não o esqueceu

5/5/05 23:35  
Blogger PortoCroft said...

É impressionante como Portugal despreza os seus talentos. Tivesse nascido em qualqur outro país, António Fragoso seria acarinhado e elevado ao estatuto de herói nacional e dado a conhecer ao mundo com orgulho.

Mas, temos o Figo, claro.

Uma vez mais obrigado por me darem a conhecer aquilo que verdadeiramente importa do meu país.

7/5/05 08:58  
Anonymous Anónimo said...

Não desistam...espero que sejá só falta de tempo!Um beijo.

10/5/05 23:53  
Anonymous Anónimo said...

best regards, nice info
»

13/11/06 22:26  
Blogger LM. said...

Muito obrigada por partilhar esta carta de Antonio Fragoso tão ilustrativa da personalidade deste magnífico compositor. Estava a fazer uma pesquisa na internet e dei de caras com o seu blogue.Estou neste momento a preparar três peças de canto e piano de Fragoso que serão apresentadas no festival Cistermusica no dia 31 de Maio no Mosteiro de Alcobaça. Fica desde já o convite para os amantes da música de António Fragoso. O concerto será gravado para a Antena 2.
Mais uma vez obrigada.
Lara Martins.

9/5/08 18:00  

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